quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Depoimento de Rita Lee

Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor. Vinham da vizinhança, da casa deBete, mocinha linda, que usava tranças. Levei apenas uma hora para saber o motivo.Bete fora acusada de não ser mais virgem, os irmãos a subjugavam em cima de sua estreita camade solteira, para que o médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se tinha ou não o selo da honra.
Como o lacre continuava lá, os pais respiraram, mas a Bete nunca mais foi à janela, nuncamais dançou nos bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como, nem com quem.Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar, saltando o muro alto do quintalda sua casa para se encontrar com o namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar noexame ginecológico.
O laudo médico registrou vestígios himenais dilacerados, e os pais internaram a pecadorano reformatório Bom Pastor, para se esquecer do mundo.
Realmente esqueceu, morrendo tuberculosa. Estes episódios marcaram para sempre a minha consciência e me fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens têm sobre o corpo das mulheres.Ontem, para mutilar, amordaçar, silenciar.
Hoje, para manipular, moldar, escravizar aos estereótipos. Todos vimos, na televisão, modelos torturados por seguidas cirurgias plásticas. Transformaram seus seios em alegorias para entrar na moda da peitaria robusta das norte americanas. Entupiram as nádegas de silicone para se tornarem rebolativas e sensuais, garantindo bomsucesso nas passarelas do samba. Substituíram os narizes, desviaram costas, mudaram o traçado do dorso para se adaptarem à moda do momento e ficarem irresistíveis diante dos homens. E, com isso, Barbies de fancaria, provocaram em muitas outras mulheres (as baixinhas, as gordas, as de óculos) um sentimento de perda de auto-estima. Isso exatamente no momento em que a maioria de estudantes universitários (56%) é composta de moças. Em que mulheres se afirmam na magistratura, na pesquisa científica, na política, nojornalismo. E, no momento em que as pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é precisofeminilizar o mundo e torna-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais próximo do humanismo.Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade. Até porque elas são desarmadas pela próprianatureza. Nascem sem pênis, sem o poder fálico da penetração e do estupro, tão bem representado porpistolas, revólveres, flechas, espadas e punhais. Ninguém diz, de uma mulher, que ela é de espadas.Ninguém lhe dá, na primeira infância, um fuzil de plástico, como fazem os meninos, parafortalecer sua virilidade e violência.
As mulheres detestam o sangue, até mesmo porque têm que derramá-lo na menstruação ou no parto.Odeiam as guerras, os exércitos regulares ou as gangues urbanas, porque lhes tiram os filhos desua convivência e os colocam na marginalidade, na insegurança e na violência. É preciso voltar os olhos para a população feminina como a grande articuladora da paz. E para começar, queremos pregar o respeito ao corpo da mulher. Respeito às suas pernas que têm varizes porque carregam latas d’água e trouxas de roupa.
Respeito aos seus seios que perderam a firmeza porque amamentaram seus filhos ao longo dosanos.Respeito ao seu dorso que engrossou, porque elas carregam o país nas costas. São asmulheres que irão impor um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas e puderem fazerprevalecer a ternura de suas mentes e a doçura de seus corações.
Nem toda feiticeira é corcunda.
Nem toda brasileira é só bunda ..

Rita Lee (Compositora e Cantora)

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